sexta-feira
*
Metrô
quinta-feira
Confessionário
São Paulo, eu pequei, mas peço seu perdão. Agi mal e desobedeci a principal norma da cidade: saí de casa sem blusa e guarda-chuva dentro da bolsa.
Sei da imprevisibilidade de seu tempo, Sampa. E mesmo assim, mesmo sabendo dos riscos do acaso dessa selva de pedras, insisti e errei, por pura preguiça de carregar mais peso na bolsa. E paguei, São Paulo, paguei o preço de uma tempestade que começou quando eu estava no meio da rua, sem qualquer telhado ou abrigo, seguida de um vento frio que fez a temperatura cair drasticamente de noite. Senti frio, SP, fiquei encharcada e peguei uma gripe daquelas. Mas nunca mais farei isso, eu juro. Pequei, Sampa, pequei, mas preciso do seu perdão.
Há ainda outras perversidades que cometi ao longo do ano, menores, mas igualmente contrárias às leis e à moral - sim, mesmo sabendo, São Paulo, que não existe "pecadão" ou "pecadinho": peguei a Marginal em véspera de feriado e não reclamei uma vez sequer do trânsito ou da poluição. Andei de metrô na Sé às 18h para voltar para casa e não praguejei as pessoas e o transporte público superlotado da cidade. Deixei de comer pastel de feira e dei para falar todos os plurais. Não me comportei como uma paulistana de verdade. Pequei, Sampa, eu sei que pequei, meu.
Semana passada, ouvi bossa e tive vontade de ter casa com vista pro mar. Até sinto vergonha por lembrar! Não incluí cuscuz paulista no cardápio; deixei que os moradores de outros Estados falassem mal de sua garoa; não me emocionei ao andar pelo seu centro histórico num dia nublado. Pequei! Mas estou arrependida! Estou realmente arrependida, São Paulo!
Em sinal de meu arrependimento, prometo cantar Sampa cem vezes seguidas. Prometo comer uma pizza por noite, durante um mês. Prometo reforçar meu sotaque do Bixiga quando estiver fora. Prometo nunca mais esquecer a blusa e o guarda-chuva. Eu prometo, Sampa.
Me perdoe.
sexta-feira
Guarda-chuva
O emprego novo; o relógio atrasado; a crise existencial; o pedido em namoro; a cura para o câncer; a nota vermelha na prova de Química; a falta de dinheiro.
Do alto do vigésimo terceiro andar, as pessoas são só guarda-chuvas atravessando a faixa de pedestres.
terça-feira
maiúscula
começo de período, verso ou citação e os substantivos próprios de
qualquer espécie devem sempre ser assinalados com letra maiúscula, diz a
gramática e a convenção autoritária. tempos atrás, dei para questionar essa
grandiosidade com uma amiga (também grandiosa), que se recusava a escrever deus
com dê maiúsculo por considerar isso uma afronta. "afronta?",
perguntei. depois de muitos dias, veio a resposta e eu entendi que a ideia era
de talvez tentar tornar a divindade alguma coisa mais próxima de nós, meros
mortais, apenas por meio de uma letra minúscula. então, lembrei das
formalidades do "eu" em inglês, de joão, de maria, da nação, do
título de meu livro de cabeceira e, quase numa poética das coisas sem
utilidade que manoel de barros faz lindamente, comparei com a casa, o sol, a
pedra, a felicidade e o medo. o que realmente faz com que um grupo pertença a
uma parte da elite das maiúsculas e o outro, dos comuns minúsculos? como estou
em uma fase muito sem cerimônias, sinto-me incapaz de escrever qualquer coisa
com letra maiúscula, nem deus ou nome próprio. assim fica todo mundo do mesmo tamanho e tudo fica muito
mais simples.
*
p.s.: mas, mesmo assim, ainda resta uma última dúvida: escrevendo deus com dê minúsculo, quem incomodo mais: deus ou a gramática?
quarta-feira
Não é só a Isadora que está insatisfeita
Na
última quarta-feira, a turma do nono ano (antiga oitava série) de um colégio
estadual da Vila Madalena, zona oeste de São Paulo, não teve aula de português
porque a professora tirou licença há duas semanas e ainda não apareceu
professor para substituí-la.
Na última quarta-feira, um jovem executivo japonês, que veio
ao Brasil expandir seus negócios em uma empresa de alta tecnologia localizada
na Avenida Paulista, teve aula de português com uma professora que está
fazendo carreira na área de PLE (Português como Língua Estrangeira).
Na última quarta-feira, os alunos do ensino médio de uma escola
particular de alto padrão em Perdizes, também zona oeste de São
Paulo, tiveram aula de literatura com um professor apaixonado pelas artes,
mas que diversas vezes deve deixar de lado sua sensibilidade artística para
pensar no que poderá cair no próximo vestibular. A resposta da questão 5 é a C.
A primeira escola mal tem giz, a biblioteca não abre todos os dias
e falta professor diariamente. “Ontem, a professora nos deixou brincando dentro
da sala, não teve aula”, disse-me aos risos uma aluna do sétimo ano. Na outra
escola, classe A, os alunos têm tablets,
acesso à internet e excursões a Brasília programadas, para realização de
estudos de meio. Nas aulas particulares ao estrangeiro, in company, a professora, que deve usar roupa social e crachá,
utiliza materiais interativos on-line
para complementar as explicações, fala de atualidades e da cultura brasileira
para ver a língua portuguesa saindo da boca dos gringos que agora estão no país
que é considerado lá fora a bola da vez (a Copa, as Olimpíadas, a economia, a
mídia...).
Há dois meses, transito por esses três mundos em estágios nas aulas de português. E sinto na pele
todos os cúmulos da contradição de nosso país das desigualdades e do descaso
com a educação.
Não é fácil. E constantemente tenho
encontrado vários “por quês?” dentro de mim. De agosto até agora, enquanto o
nono ano do colégio particular teve aulas de gramática, prática de redação,
leitura de poesia e um datashow e
ar-condicionado em cada sala, o nono ano da escola pública, com porta de ferro
e parede esburacada, viu tópicos isolados de gramática, preencheu uma ficha de
leitura sobre um livro qualquer que foram "obrigados" a ler em casa
e... só! A biblioteca da escola pública tem ótimos livros, mas a maioria está
intacta, daqueles que têm cheiro de novo e até faz barulho ao abrir; a escola
particular tem um espaço de convivência apenas para as atividades de artes e
teve de mudar a biblioteca de lugar por falta de espaço. No intervalo, os
alunos da escola pública mal têm merenda; os da escola particular podem sair
para as padarias e restaurantes próximos do quarteirão.
Em ano
marcado pelas denúncias de Isadora, a pequena "guria" que criou o
Diário de Classe, uma página no Facebook destinada a contar tudo o que anda
errado na escola pública de Florianópolis onde estuda, e a professora de Santos
que foi agredida pelo aluno dentro da sala de aula, fica evidente: pior do que
tá fica sim!
Canso de ouvir amigos
professores dizendo que se sentem alvos na frente de 40 alunos que humilham e
desrespeitam o educador; que devem substituir os pais no papel da educação que
deveria vir de casa; que os alunos não têm interesse, só querem saber de faltar
e não fazem as tarefas; que são desvalorizados como profissionais e que mal
conseguem pagar as contas com o que recebem.
Mas logo me sinto renovada com as histórias dos mesmos amigos
professores que contam de cada troca de experiência que deu certo; de cada
alegria por ter feito a diferença com algum aluno; de cada inquietação que
gerou questionamentos e novos aprendizados; de cada esforço que valeu a pena e
fez o dia terminar com a sensação de dever cumprido. Alguns falam em missão.
Outros, em tesão.
Semana
passada foi dia dos professores e, mesmo parecendo que todos nós só lembramos com
carinho desses mestres esquecidos no comemorativo 15 de outubro, dedico este post, com todo meu respeito e admiração,
ao brilho que ainda vejo nos olhos de meus colegas que estão se tornando
educadores por querer fazer a diferença. Ainda que com a indecência de um salário de sete reais acrescidos
no holerite por aula dada no Estado.
Foto: Caroline Alls |
*
Redação
quinta-feira
Egocentrismo
- Pessoal, atenção à chamada. Número 1?
- Eu!
- 2?
- Eu!
- 3?
- Eu!
- 4?
- Eu!
- 5?
- Eu!
- 6?
- Eu!
- 7?
- Eu!
- 8?
- Eu!
- 9?
- Eu!
- 10?
- Eu!
- 11?
- Faltou.
- 12?
- Eu!
- 13?
- Eu!
- 14?
- Eu!
- 15?
- Eu!
- 16?
- Eu!
- 17?
- Eu!
- 18?
- Eu!
- 19?
- Eu!
- 20?
- Eu!
- 21?
- Eu!
- Eu!
- 2?
- Eu!
- 3?
- Eu!
- 4?
- Eu!
- 5?
- Eu!
- 6?
- Eu!
- 7?
- Eu!
- 8?
- Eu!
- 9?
- Eu!
- 10?
- Eu!
- 11?
- Faltou.
- 12?
- Eu!
- 13?
- Eu!
- 14?
- Eu!
- 15?
- Eu!
- 16?
- Eu!
- 17?
- Eu!
- 18?
- Eu!
- 19?
- Eu!
- 20?
- Eu!
- 21?
- Eu!
Foto: Caroline Alls |
terça-feira
3x4
Estava
em Roma quando senti meu tênis em cima de um pedacinho de papel já todo sujo e
riscado pelos pisões dos outros passantes. O instinto primeiro foi pegá-lo, mas
hesitei por alguns segundos daquele verão escaldante sem brisas. Então olhei em volta para
me certificar de que ninguém me observava e resgatei o papel em segredo para
rapidamente me dar conta de que era uma foto 3x4 perdida ali no chão por
algum turista. Quem sabe? Sem motivos, guardei a fotografia de fundo branco na bolsa e lá
deixei por dias, até esquecer.
Mas me deu um estalo. Hoje eu acordei e fiquei encarando a pessoa
da foto. Quem é você? Noto: menina mulher dos seus vinte anos; loira do cabelo liso levemente
esvoaçado; branca e dos olhos azuis, como manda o figurino do estereótipo
europeu; camiseta preta sobreposta por uma blusa de malha da mesma cor dos
olhos de cílios compridos embebidos por rímel preto. Batizei-a de Madeleine e imagino: filha de pai inglês e mãe francesa, fruto de um amor de rixas entre
nacionalidades. Moraria no interior da Inglaterra, estaria planejando sair de
casa e cozinhava muffins de lamber os dedos.
Quando percebi, dei para falar com Madeleine. Para falar do
oculto. Para esvaziar com tudo aquilo que sou incapaz diante da cruz pregada na
parede; do celular com pouca bateria; do caderno sem páginas em branco.
Já estou te chateando com tantos problemas, Madeleine? Madeleine não responde, me afronta e me
obriga a falar até o esgotamento. Forço algumas interações, Diga, Madeleine, o que você acha?,
mas só recebo uma boca séria reproduzida em um papel todo riscado e
amassado.
E sigo assim, na incerteza do divino e na falta de um divã, monologando-me com
Madeleine, minha nova confidente.
Até breve, Porto!
Último dia no Porto. Sou só saudades; daqui e de lá.
O Ora Pois termina aqui. Já comi minha última natinha, olhei pela última vez para o Douro e me despedi dos vizinhos. Que sensação estranha! As malas não fecham e o coração aperta por já estar indo embora.
Ganhei de Portugal experiências incríveis e até inimagináveis para quem estuda a língua de Camões. Ganhei do Porto um abrigo e muitas possibilidades. Ganhei do intercâmbio outros ângulos e saudades da pátria verde e amarela.
Agora são tempos de novas partidas, novas chegadas e, principalmente, de novos sonhos e ciclos iniciando.
Obrigada, Porto, por esses seis meses. Pelos medos iniciais, perrengues e alegrias no durante e marejada nos olhos pela despedida.
A Terra da Garoa me espera. Dessa vez, cheia de histórias e portugalidades; com o verdadeiro sentimento de diário de bordo cheio; realizado; maduro!
Então é isso.
Hora de desembarcar. Com vontade de atracar por aqui brevemente.
*
Ora pois
segunda-feira
O melhor da Europa é viajar
O Porto está vazio. Não de turistas que aproveitam o verão para conhecer as praias e encantos portuenses, mas de intercambistas que passaram o semestre aqui e que agora estão aproveitando para viajar pela Europa. Afinal, o melhor do velho continente é viajar!
Nós brasileiros, que moramos em um país de dimensão continental, ficamos deslumbrados com a proximidade e até pequenez (do nosso ponto de vista, é claro) dos países europeus. Em pouco tempo de viagem, novas línguas, paisagens, cultura e até resgate histórico de nossa origem miscigenada. Como é fácil viajar por aqui! Seja por companhias aéreas low cost, pacotes de viagens de trem, carro.
Comigo não foi diferente. Mochila nas costas, passaporte todo carimbado, Ryanair, câmera, albergues baratos... e diário de bordo recheado de descobertas.
Voltei ontem cheia de novidades. Com novos planos. E saudades do Porto.
Em dois dias eu estarei de volta à Terra da Garoa. E já começo a sentir falta disso que agora é meu presente.
Em algum lugar do céu |
*
Ora pois
domingo
Pequeninos deleites portuenses
Porto já são despedidas.
Alguns já foram e novos estão vindo. A Cidade Invicta se renova.
Com os dias contados, tudo tem tom de nostalgia: a vista da janela, as amizades, o centro histórico, o Douro, a praia; o que vivi nessas terras e que nunca mais será assim, igual, aqui, de novo. Quantos detalhes cotidianos não farão falta? São pequeninos deleites portuenses sendo tirados, em contagem regressiva, da minha rotina.
Morar no centro histórico |
Almoçar francesinha aos sábados |
Rodear-se de arte de rua na Santa Catarina |
Ir à Gaia pela ponte Dom Luís |
Jogar papo fora na Praça da Reitoria |
Ver o Douro se encontrar com o Atlântico |
Ir ao Teatro Nacional São João de quinta-feira |
Caminhar pelas ruas à noite |
Fazer piquenique no Serralves |
Beber um Porto à noite |
Encontrar miragens de verão pelo caminho |
Deparar-se com o inusitado |
Sentir a primavera no Palácio de Cristal |
Sentar num banco da Praça da Liberdade |
Descobrir as praias de bicicleta |
Ligar o aquecedor no inverno |
Dar uma pausa para um café com natinhas no fim de tarde |
Ter o céu riscado por aviões |
*
Fotos minhas, da Andréa Albuquerque e da Cynthia Navarro.
*
Ora pois
Viva São João!
Ontem teve noite de São João no Porto.
Foi como se sentir em algum universo fantástico que costumamos ler nos livros. Uma lua sorrindo no céu, como quem desse as "boas-noites" aos milhares de visitantes que chegavam à ribeira do Douro de todas as partes do mundo; a cidade mais iluminada do que de costume, cheia de tradição coberta pelas marteladas na cabeça, brincadeiras com os "alhos-porros" e sardinhas na grelha; um céu pintado por balões de ar quente, feito estrelas a se movimentarem e enfeitarem a festa; e os fogos de artifício ansiosos, à espera da meia-noite para saudarem o dia de São João.
Foi como se sentir em algum universo fantástico que costumamos ler nos livros. Uma lua sorrindo no céu, como quem desse as "boas-noites" aos milhares de visitantes que chegavam à ribeira do Douro de todas as partes do mundo; a cidade mais iluminada do que de costume, cheia de tradição coberta pelas marteladas na cabeça, brincadeiras com os "alhos-porros" e sardinhas na grelha; um céu pintado por balões de ar quente, feito estrelas a se movimentarem e enfeitarem a festa; e os fogos de artifício ansiosos, à espera da meia-noite para saudarem o dia de São João.
Rio Douro na festa de São João (23/06), pelas 23h30 - Foto de João Pedro Alves Cardoso |
O São João do Porto ocorre tradicionalmente na noite de 23 a 24 de junho, espalhada pelo centro histórico da cidade e pelas freguesias mais ligadas à tradição católica. Os que têm mais fôlego, continuam a festa na praia, ao nascer do sol. A noite é regada por muita música, comidas, bebidas e marteladas na cabeça, com martelinhos de plástico que alegram a noite.
*
Ora pois
segunda-feira
Demora
- Vamos?
- Estou indo. Espera só eu fumar meu cigarrinho.
Uns esperariam o tempo de um ciclo da máquina de lavar; da preparação de um miojo; de um bloco da novela; da chegada de uma ligação; de um xixi; de ler um capítulo; de um segundinho.
Ariel demoraria o tempo de um cigarrinho - nem um trago a mais, nem um trago a menos.
Mas é rapidinho.
*
Ariel
sábado
O estrangeiro é um forte
Já são mais de quatro meses morando no Porto. Não digo que o tempo voou. Ou teria voado? A lembrança de um inverno europeu negativo que cobriu o velho continente em fevereiro ainda é muito presente em mim neste final de primavera portuguesa coberta por cerejas. Parece que foi ontem. Mas aí a gente se pega fazendo planos para quando voltar, pensando na logística das malas para a ida ao aeroporto no dia da volta e sentindo saudade de cada coisa do Brasil que a impressão que dá é que já estou há anos aqui. Como o tempo é traiçoeiro.
Até então, nunca tinha passado pela experiência de ficar tanto tempo longe de casa. Nunca me senti estrangeira. Minto. Me sinto estrangeira quando estou desconfortável por ficar em ambientes que não queria estar e com pessoas que não queria estar. É questão de pertencimento e somos todos estrangeiros, afinal, quando não pertencemos. Não pertencer é a pior das estrangeirices.
Mas falava de outro tipo de estrangeiro ou, melhor dizendo, o literal: aquela pessoa que não é natural do país onde está e que não pode desfrutar da cidadania. Aquela que está longe de sua cultura, dos seus semelhantes, da sua língua, da sua bandeira e que se vê declamando um canto do exílio qualquer.
Não é fácil deixar seu país. Seja por seis meses, por um ano, por dois, por dez... por cinquenta. Seja por razão de estudo, de trabalho, de família, de fuga. Seja para dar continuidade a algum projeto, para aprender coisas novas, para começar do zero. O estrangeiro é, antes de tudo e se Euclides da Cunha me permitir, um forte. Fortes, principalmente, quando somos recebidos com preconceito pela outra pátria.
Infelizmente, o preconceito existe em todo lugar que não somos bem-vindos. Em todo lugar que somos estrangeiros, não faltam histórias de pessoas que sofreram algum tipo de preconceito enquanto estavam em outro país. E nenhuma nação está imune disso.
Aqui em Portugal não aconteceu nenhum episódio grave de preconceito comigo. Ainda bem, não é mesmo? Meu maior denunciador aqui é minha língua, minha identidade mais importante. Já me vi algumas vezes evitando falar alto na rua para não perceberem que sou brasileira, apenas por precaução. Nossas variações são delatoras! Pelo sotaque, pelos "a gente", pelas gírias e expressões... Ainda assim, sou muito grata pelos portugueses que têm me recebido tão bem aqui e que não se cansam de perguntar se estou gostando do país. Muitos "portugas" que fixei amizade amam a cultura verde e amarela, nossa música e nossa literatura. E não fazem questão de esconder isso.
Mas também estamos cercados de exemplos negativos. Seja com a chinesa que vi sendo barrada na imigração do aeroporto à família boliviana que viram sendo impedida de entrar na Europa. Seja com o grupo de ciganos que quase foi expulso do comboio que ia a Vila Real ao Breno Augusto, meu colega brasileiro que foi chamado de "macaco" por duas jovens portuguesas, de dentro do autocarro. Seja pelas histórias de brasileiros que chegam até nós: estudantes que foram ofendidos nos Estados Unidos, donas de casa que foram maltratadas na Argentina, cusparadas na cara na Inglaterra, ofensas vindas de moradores de rua portugueses. E por brigas de poder entre aeroportos, como no recente caso entre o Brasil e a Espanha.
Seja, ainda, por brigas internas, dentro do mesmo país, um absurdo sem igual. Quantos nordestinos você conhece que já sofreram algum tipo de preconceito no sudeste? Quantas rixas entre paulistanos e cariocas já foram presenciadas? Quantas pessoas do norte do Brasil já não foram caçoadas pelas do sul? A lista é interminável.
Racismo, xenofobismo, nacionalismo... são os piores cânceres da humanidade que, infelizmente e pelo menos por enquanto, somos obrigados a saber lidar sem perder a cabeça, por estarmos longe de casa. E se o estrangeiro é, como disse, um forte, nós que estamos distantes do conforto de nossa pátria somos obrigados a aprender a vestir nossa armadura. A minha está bem ajustada ao meu corpo, mas espero que por pouco tempo.
Até quando a origem do seu passaporte será mais importante do que o seu caráter?
*
Ora pois
quarta-feira
(...)
Para a Cynthia.
Preciso de um título. Tem que ser algo impactante e que chame o leitor. A porta de entrada da narrativa. Já procurei palavras no dicionário e nada, nada me agrada. Mostrei o texto a amigos e ninguém teve uma boa ideia - pelo menos ainda. Quero um insight, um brainstorming, um fiat lux! Ariel leu, mas ele não me ajudou muito. Eu quero uma coisa... Ai, como posso explicar? Quero exprimir a sensação de... tcham... ahhh... hum... sabe? Mas não sai nada. Por que dessa pressão? Por que somos condicionados a criar textos com títulos? Não quero um título medíocre! Os parágrafos não se bastam? Farto de tantos "nãos" que dei, Ariel deu, então, para dizer que tenho que inventar uma palavra, mas não quero neologismos. Quero substantivos concretos e verbos enfáticos. E ele foi muito claro: "Deixa disso! Às vezes, você teima por querer dizer o indizível".
E meu texto ficou, afinal, sem título.
*
Ariel
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