sábado

O estrangeiro é um forte

Já são mais de quatro meses morando no Porto. Não digo que o tempo voou. Ou teria voado? A lembrança de um inverno europeu negativo que cobriu o velho continente em fevereiro ainda é muito presente em mim neste final de primavera portuguesa coberta por cerejas. Parece que foi ontem. Mas aí a gente se pega fazendo planos para quando voltar, pensando na logística das malas para a ida ao aeroporto no dia da volta e sentindo saudade de cada coisa do Brasil que a impressão que dá é que já estou há anos aqui. Como o tempo é traiçoeiro. 

Até então, nunca tinha passado pela experiência de ficar tanto tempo longe de casa. Nunca me senti estrangeira. Minto. Me sinto estrangeira quando estou  desconfortável por ficar em ambientes que não queria estar e com pessoas que não queria estar. É questão de pertencimento e somos todos estrangeiros, afinal, quando não pertencemos. Não pertencer é a pior das estrangeirices. 

Mas falava de outro tipo de estrangeiro ou, melhor dizendo, o literal: aquela pessoa que não é natural do país onde está e que não pode desfrutar da cidadania. Aquela que está longe de sua cultura, dos seus semelhantes, da sua língua, da sua bandeira e que se vê declamando um canto do exílio qualquer. 

Não é fácil deixar seu país. Seja por seis meses, por um ano, por dois, por dez... por cinquenta. Seja por razão de estudo, de trabalho, de família, de fuga. Seja para dar continuidade a algum projeto, para aprender coisas novas, para começar do zero. O estrangeiro é, antes de tudo e se Euclides da Cunha me permitir, um forte. Fortes, principalmente, quando somos recebidos com preconceito pela outra pátria. 

Infelizmente, o preconceito existe em todo lugar que não somos bem-vindos. Em todo lugar que somos estrangeiros, não faltam histórias de pessoas que sofreram algum tipo de preconceito enquanto estavam em outro país. E nenhuma nação está imune disso. 

Aqui em Portugal não aconteceu nenhum episódio grave de preconceito comigo. Ainda bem, não é mesmo? Meu maior denunciador aqui é minha língua, minha identidade mais importante. Já me vi algumas vezes evitando falar alto na rua para não perceberem que sou brasileira, apenas por precaução. Nossas variações são delatoras! Pelo sotaque, pelos "a gente", pelas gírias e expressões... Ainda assim, sou muito grata pelos portugueses que têm me recebido tão bem aqui e que não se cansam de perguntar se estou gostando do país. Muitos "portugas" que fixei amizade amam a cultura verde e amarela, nossa música e nossa literatura. E não fazem questão de esconder isso. 

Mas também estamos cercados de exemplos negativos. Seja com a chinesa que vi sendo barrada na imigração do aeroporto à família boliviana que viram sendo impedida de entrar na Europa. Seja com o grupo de ciganos que quase foi expulso do comboio que ia a Vila Real ao Breno Augusto, meu colega brasileiro que foi chamado de "macaco" por duas jovens portuguesas, de dentro do autocarro. Seja pelas histórias de brasileiros que chegam até nós: estudantes que foram ofendidos nos Estados Unidos, donas de casa que foram maltratadas na Argentina, cusparadas na cara na Inglaterra, ofensas vindas de moradores de rua portugueses. E por brigas de poder entre aeroportos, como no recente caso entre o Brasil e a Espanha. 

Seja, ainda, por brigas internas, dentro do mesmo país, um absurdo sem igual. Quantos nordestinos você conhece que já sofreram algum tipo de preconceito no sudeste? Quantas rixas entre paulistanos e cariocas já foram presenciadas? Quantas pessoas do norte do Brasil já não foram caçoadas pelas do sul? A lista é interminável. 

Racismo, xenofobismo, nacionalismo... são os piores cânceres da humanidade que, infelizmente e pelo menos por enquanto, somos obrigados a saber lidar sem perder a cabeça, por estarmos longe de casa. E se o estrangeiro é, como disse, um forte, nós que estamos distantes do conforto de nossa pátria somos obrigados a aprender a vestir nossa armadura. A minha está bem ajustada ao meu corpo, mas espero que por pouco tempo. 

Até quando a origem do seu passaporte será mais importante do que o seu caráter?  

Um comentário:

Breno Santos disse...

Infelizmente o eurocentrismo continua vivo na sociedade européia e muitos membros dessa sociedade no pós Segunda Guerra tentaram enterrar, depois de uma era, que Eric Hobsbawm define, como catastrófica. Intelectuais engajaram nessa luta, entre eles, o francês Levi-Strauss, conhecido nas cadeiras da USP e pelo seu livro "Tristes Trópicos". Infelizmente, essa luta não eliminou idéias que serviram como base para a neocolonização na África no século XIX e os massacres nos campos de concentrações pelos nazistas.Mesmo com os avanços no campo educacional, ainda percebemos o eurocentrismo entre os mais jovens, mesmo nos miúdos..