sexta-feira

Jornada mítica do herói


 O texto a seguir é a reportagem final entregue no curso de "Jornalismo e Literatura", do site Jornalirismo, com o professor Guilherme Azevedo. Após cinco horas de caminhada pelas ruas do centro de São Paulo, pudemos observar muitos fatos e realidades que os nossos olhos fixados no automatismo, por vezes, não enxergam. Entre vozes, literatura e jornalismo, eis o resultado da nossa jornada mítica do herói:

 As vozes e a literariedade de São Paulo 

 A cidade de São Paulo tem gosto de torta de palmito levemente apimentada. Como saco vazio não para em pé, a jornada mítica do herói pelas ruas do centro de São Paulo teve parada obrigatória em uma lanchonete do Shopping Light, a fim de encher o que estava quase oco. Caminhando sem muito destino previsto, nosso grupo de sete pessoas navegou pelos mares de cimento e buracos da nossa cidade. Disposta a ouvir as vozes que geralmente não ouvimos e a perceber a literariedade dos objetos cotidianos do centro que geralmente nos passam batidos é que se iniciou a minha jornada mítica do herói.

 Por volta das 10h30 da manhã de um sábado, misturava-se nas ruas quem estava acordando e quem ainda não havia dormido – os sobreviventes, mortos-vivos da noite anterior, que esticaram a balada para as calçadas dos bares sujos. Dia ensolarado, mormaço, poluição. As ruas agitadas da cidade têm ritmo diferente aos sábados. O movimento do tráfego, constante de cima do Viaduto do Chá, parece ter voz. Uma voz menos apressada, voz de sétimo dia da semana, disposta a observar melhor os flashes que passam pela janela dos motoristas, os grafites nos muros, o ônibus que faz a curva. É uma voz que quer falar. Quantas vozes, afinal, querem falar e não são ouvidas, no centro de São Paulo?

 Uma das vozes de nossa jornada mítica foi a do Seu José, 87 anos, que toca violino no Viaduto do Chá. Não existe Beethoven no violino do Seu José, não existem partituras a serem lidas pelos seus olhos escuros e apertados. Tudo que sai daquele arco de cerdas frouxas e das cordas já para escapar é invenção. Ele toca o que vem na cabeça, o que o coração manda ser musicado. Ao dedicar alguns minutos da sua atenção ao nosso grupo de estudantes, percebe-se que Seu José é bom de papo: Falou de sua vida morando dentro de uma Kombi no Cambuci, do pouco dinheiro que recebe da aposentadoria e da necessidade de tocar seu violino no viaduto para, com o dinheiro dado pelos passantes, comprar remédios.

 Toda trajetória de vida contada pelo Seu José, que veio de Minas para São Paulo, são fatos expostos por alguém que já passou por alguns padecimentos. A lição que ele compartilhou conosco foi a de “suportar o sofrimento sem revolta”, pensamento esse exprimido com palavras mansas e enroladas, sentado em um banquinho de frente ao sol, protegendo o rosto machucado pelo tempo apenas com um boné com a estampa de propaganda de uma loja. A música sem dúvida tem papel fundamental na vida do Seu José e é por meio do violino que ele consegue expressar o que vem de dentro dele e que se sobressai. A arte. Seu José fala com a música para as diversas pernas que passam despercebidas por ele, em um som que voa por todo Vale do Anhangabaú. Aos poucos, um aglomerado de curiosos se forma em volta do violino. Atravessando a via, homens placas. “Compra e vende ouro”.

 Se no Viaduto do Chá se fala com música, no marco zero, em frente à Catedral da Sé, os donos das vozes são os pastores e moradores de rua que falam para quem quiser ouvir. Francisco, o pastor com pouco público disposto a apreciar a palavra de Deus, misturava arca de Noé com vídeo no Youtube em seu discurso. Natural do Ceará e ex-viciado em drogas, falou do crack que mata os jovens do país, do salmo 23 e da sua igreja em Vila Nova Cachoeirinha. Tímido ao falar sobre ele e sobre sua família, dentro de um grande terno marrom, transformava-se em um ator e um verdadeiro líder quando o assunto era os seus ensinamentos da bíblia. E a importância do mundo das palavras para o pastor Francisco? São muitas. Para ele, a palavra é invisível e dói mais do que um tapa. E com certeza uma palavra bem dada doeria mais do que o tapa na cara que uma moradora de rua deu em outro sem teto, embriagado, no canto da paisagem. A palavra de Deus salvou Francisco do vício. E as suas palavras lançadas pela Praça da Sé chegam até os ouvidos que estão tampados por hábitos automáticos dos que não querem ter o sentido da audição. Ao fundo, meio dia na catedral. Os sinos vibram e produzem badaladas.

 E os moradores de rua, loucos transeuntes dessa cidade igualmente fora do comum? Haveria algum olhar literário em suas falas e atitudes? Localizados no marco zero, zanzando entre os pastores e turistas gringos perdidos, teria suas vidas de mendigos iniciado no marco zero? Muitos teriam vindo de Minas, Goiás, Mato Grosso, Paraná, Santos e Rio. Muitos estariam lá por falta de opção ou pelo esgotamento de todas elas. Os que não têm medo, resgatam alguma sensibilidade e entendem a realidade deles. Param para ouvir, dispõem-se a tentar ajudar, dão esmolas. O marco zero dos mendigos transformou-se em um purgatório. E, então, quando poderão entrar na Catedral da Sé sem serem impedidos pela justiça divina dos seguranças? Um pedinte grita um palavrão e xinga Jesus.

 Dentro de um dos maiores templos neogóticos do mundo, frio e calmaria. Diferentemente do ambiente desordenado do lado de fora, a igreja principal exalava paz. No altar, o padre falando para algumas dezenas de fiéis. As palavras de uma mulher sussurravam em lágrimas ao conversar com a santa do altar lateral. Palavras molhadas, voz segredada. Fé.

 E assim foi a nossa expedição pelas ruas do centro da cidade da garoa. Ouvidos descobertos, olhos sem nuvens. Pés, bloquinho de anotações. Observações, conclusões. Falsos paulistanos, Deus. As muitas vozes, a literatura presente no cinza do urbano.  


@lucasgallifoto | Lucas Galli
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@shellahavellar | Sensorion 
@jornalirismo | Jornalirismo 
@aledeazevedo | Alê Azevedo 

4 comentários:

Tomaz C Frausino disse...

Meu nome é Camilla e eu escrevo bem pra caralho... hahahaha
Sério, tá muuuuito bom, muito mesmo.
Bateu até uma vontade de ter feito o curso.

Camilla Wootton Villela disse...

Aaah, olha só quem fala!
Viu só? Eu falei para você ir fazer o curso comigo! No próximo você vai.
Obrigada pelo comentário, Tomaz! Recebê-lo de você é mais do que um elogio; é um privilégio.
Super beijo.

Lauro disse...

E esse texto hein? Escreve muito bem, achei mto lindo seu blog...
Parabéns !
E só pra constar, já que vc merece saber quem sou... hahaha, enfim, aquele amigo da bruna que te ligou do nada aquele dia haha. Me apresento, pois.
Adorei o blog, "na moral" mesmo...atéé favoritei aqui.
um beijo

Camilla Wootton Villela disse...

O texto foi publicado ontem (21/11) no site do Jornalirismo. Visitem também! http://jornalirismo.com.br