sexta-feira

Relatos de uma recenseadora

O Censo já passou na sua casa?


 Segundo dados presentes no site do IBGE, 91% da população brasileira já foi recenseada. O Censo 2010 já está em processo de finalização - no bairro onde eu faço, essa é a última semana.

 Se no ano de 1872, 9930478 foi a população contada pelo Recenseamento da População do Império do Brasil, no atual estágio do processo, passamos dos 170 milhões. De lá para cá, somos mais mulheres, somos mais urbanos, nossa expectativa de vida aumentou, a mortalidade infantil diminui. A pirâmide etária do nosso país tem, cada vez mais, as características da pirâmide de um país desenvolvido. Muito evoluiu, muito continua evoluindo. E muitos problemas são apontados, esperando soluções. 

 Esses quase dois meses como recenseadora me renderam boas experiências. Aprendi que lidar com o público, com gente, não é tarefa fácil e que, apesar de tantos problemas, o brasileiro é uma pessoa divertida e conversadeira - salvo os grosseiros e mal educados que existem no mundo inteiro. Esse período de trabalho me deu, a cada nova entrevista, uma nova história, uma nova realidade. Vou compartilhar com vocês algumas das minhas experiências:


 As crianças: O futuro do nosso país
 Ninguém me surpreendeu tanto com tamanha consciência como o pequeno Rodrigo*. Esse compartilhamento das minhas experiências merece começar com ele. Ao tocar a campainha da casa dele, a vizinha me informou que os moradores daquele endereço se encontravam do outro lado da rua, na loja que é do responsável pela casa. Chegando lá, quem me atendeu foi o Rodrigo, filho do dono do estabelecimento. De apenas 12 anos, o pequeno homenzinho foi logo tomando a frente da situação: Chamou o pai para responder a pesquisa, enfatizando, a toda hora, a importância do Censo. O pai, ocupado com os afazeres da loja, disse que não tinha tempo para a pesquisa e que não ia responder. Rodrigo ficou indignado, brigou com o pai e disse que ele não sabia o que estava falando. "Você sabe o que é isso, pai? Pô, é importante! É lei! Tem que responder, eu aprendi na aula de Geografia... É importante pro Brasil, pai!". Fiquei boquiaberta e completamente sem rumo. "Ai, desculpa o meu pai... Ele não sabe de nada! É cabeça dura!". No final, fiz a pesquisa com o próprio Rodrigo (as pesquisas podem ser feitas com os moradores a partir de 10 anos). Recebi coca-cola, bolo e a maior lição mirim após um monte de porta fechada na cara. Ah, se todo mundo fosse igual ao Rodrigo...

 Outro exemplo do futuro do nosso país aconteceu com a fofa da Luísa. Respondendo tudo com proficiência, paralisou nas datas de nascimento dos seus familiares. Não sabia e não quis chutar as idades. Por isso, correu para o quarto, onde seu pai estava trabalhando, e voltou alguns instantes depois com uma lista com o nome de todos os moradores, com as respectivas datas de nascimento, enquanto a irmã mais velha teclava algumas palavras mal ditas no laptop, pouco se importando em ajudar a caçula. E eu nem havia pedido nada!

 As velhinhas: Quem já foi o futuro do nosso país
 Dona Esmeralda é do tipo prática. Desculpando-se por não poder ir até a portaria do predinho de três andares, por estar com fortes dores no joelho, não teve dúvidas: Tacou a chave do portão na minha direção, diretamente do segundo andar. Com boa pontaria, o molho de chaves caiu exatamente na minha mão. Rodei a chave na fechadura, entrei e fiz a entrevista.

 Moradora do bairro há mais de cinquenta anos, pessoas como a dona Joana são encontradas em alguns quarteirões da cidade. Com a intenção de me ajudar, interfonou para todas as amigas e chamou-as para responder o Censo: "Vem logo, Judite! É o Censo... A menina do Censo tá aqui, vem responder!". Muitas vovós te tomam, literalmente, como netas. E dão um carinho que não merece ser esquecido por ninguém. Tem também as aposentadas que moram sozinhas, que deixam a casa muito limpa e arrumada, como se sempre estivessem esperando uma visita. Mais de uma vez eu cheguei em uma dessas casas e fui tão bem recebida que mais parecia que eu estava dentro da casa da minha vó. Só depois percebi que o que a maioria dos moradores solitários mais quer é visita. Quando eu vou embora da casa das aposentadas, até recebo beijinho e abraço. "Tchau, vó", meu coração sente vontade de dizer.

 Que cor eu sou?
 Sem dúvida, a pergunta sobre a cor é uma das mais polêmicas. As opções dadas no questionário são claras: Branco, preto, amarelo, pardo ou indígena. Ainda assim, muita gente fica em dúvida e muitos vêm reivindicar: "Mas preto não é cor. Eu sou negro, e com muito orgulho da minha cor!". Concordo.
Nós recenseadores fomos treinados para não dar palpite e para lermos as opções do jeitinho que está escrito no questionário. Tudo que o morador responder deve ser preenchido por nós, sem darmos opinião ou tirarmos qualquer conclusão precipitada. Ainda assim, sempre tem aqueles que não sabem dizer qual cor são e perguntam para mim que cor eu acho que eu devo marcar, olhando para o próprio braço, na tentativa de descobrir qual cor que eles são. 

- Cor ou raça que a senhora se declara ser? Eu tenho as opções branco, preto, amarelo, pardo e indígena.
- Ah... Eu sou morena clara, né! 
- Senhora, não tem a opção morena. Tem a opção parda. 
- Ah, mas eu não sou parda. Põe amarelo... É que eu sou meio bege, moreno clarinho. Eu não sou branca, mas também não sou preta. Põe moreno!  

 Outra situação:
- Cor ou raça que o senhor se declara ser?
- Hum... Eu sou branco...
- Ok. Próxima pergunta...
- ... Eu tou queimadinho assim, mas é do sol. Porque eu sou branco!
- Tudo bem. Eu já marquei branco.
- É que eu tomo muito sol. Eu estou moreno de sol, mas eu sou branco!

 Mais uma, que ficará para a história:
 Ao perguntar para a mãe do Elvis, o pequeno de três anos, a cor ou raça dos moradores da casa, o menino deu um pulo e gritou indignado: "Mãe, eu não sou pardo! Eu sou da cor do homem de ferro!".

 Moradores caninos: Ele faz parte da família  
 Se a família média do brasileiro é composta por quatro pessoas, os pais e dois filhos, tem gente que quer contrariar as estatísticas:
- Quantos moradores na casa?
- Ah, aqui só e... São dois!
- Quais são os nomes dos moradores?
- O meu, que é Maria do Socorro Sousa e o Rex... Né Rex... Cuti cuti da mamãe... Ai Rex... Vai, fala pra moça eu também moro aqui... Ai que gostoso... Lindo da mamãe!

 Os nomes
 Essa situação aconteceu com o Rafa, o meu ACS. Achei engraçado quando ele me contou, mas só parei para pensar quando cheguei em casa... Ao fazer a supervisão de um setor, em entrevista com um dos moradores da casa, chegou a vez de preencher o nome de todos que moram naquele domicílio. "Vixe, o nome completo deles? Eu não sei não. Só conheço por Pitu e Pernambuco". Racho de rir só de imaginar essa cena. Mas fico pensando o que deve ser morar com duas pessoas que você não sabe o nome verdadeiro. Quer dizer, pensando bem, se chamar por Pitu ou Pernambuco e um dos dois atender, tá bom demais, não?

 Outro fato relacionado com nome é a carga do estrangeirismo que noto nos brasileiros. É inacreditável a quantidade de William, Wesley, Cleiton, Maicon (o que importa é a pronúncia!), Danielly, Pablo, Yasmin, contrapondo-se aos inúmeros Mirosmar, Ivonete, Osmir, Maricleide, Edinalva, Ariovaldo, Idelmir... Ê Brasil!

 Um país chamado Pernambuco
- Alguma pessoa que morava aqui com vocês estava morando em outro país em 31 de julho desse ano? 
- Olha minha filha, de estrangeiro aqui só a minha mulher.
- Mas que morava com o senhor e saiu daqui não tem ninguém?
- Não, só a patroa que veio do exterior, né bem? Ela é chique, veio de um país chamado Pernambuco, ha ha ha.
 Respondeu o marido, enquanto a mulher observava tudo do alto da janela, só rindo um riso gostoso vindo desse país chamado Pernambuco, cheio de saudade dos que ficaram lá.

 A água, o suquinho, o café
- Você quer alguma coisa?
 Não vou dizer que eu não aceito, porque eu aceito váaarias coisas que os moradores me oferecem. Afinal de contas, enquanto uns respondem ao questionário atrás das grades do portão da frente, sem ao menos ir para a calçada para ficar ao meu lado, outros oferecem até o que não tem na despensa. Não vou me esquecer do suco de tangerina da dona Isabel, da santa água que vários moradores me ofereceram ou do pãozinho com manteiga e um copo de Toddy que a dona Ana disse que, se eu quisesse, ia preparar, com dó de mim por eu ter que esperar até de noite a vizinha dela chegar do trabalho. Outro cafezinho que me foi oferecido - todo mundo sabe que junto de um cafezinho sempre vem uma conversa boa -, em uma casa humilde com sete moradores, foi o da dona Sebastiana. Como quem luta a cada dia, ela confessou para mim que estava vivendo na abstinência do álcool; "aqui a situação já foi muito pior. Tá tudo melhorando aos poucos. Eu queria te oferecer um suco, mas não tem nada na geladeira. Só tem café. Eu posso fazer um café para você... Você quer?".

 A hora da novela, o volta outro dia
- Oi, boa noite, eu trabalho para o IBGE e vim fazer o Censo na sua casa!
- Ai, filha, desculpa, mas você não pode voltar amanhã? É que a minha novela acabou de começar!

 Algumas desculpas e pedidos de retorno no dia seguinte são válidos. Outros cansam e são mais conhecidos como desculpas esfarrapadas. Deixar de responder a pesquisa por dizer que estava sem a chave da porta, que tinha visita em casa, que é surdo ou que não fala português nem sempre cola. E, infelizmente, nós temos que acatar e marcar como "domicílio fechado".

Cantada fail
- Bom, então é isso, Marcelo, obrigada pela sua contribuição. Agora a gente só volta em 2020.
- Caramba, 2020?
- É. O Censo acontece a cada dez anos.
- Ah, mas se você deixar o seu telefone, a gente se vê antes.

 A renda
- Qual foi a sua renda em julho desse ano?
- Ah não, isso é um particularidade minha. Nem minha mulher sabe quanto que eu ganho! Não vou responder.
 Ai...
 Esconder a renda de uma recenseadora não é legal, mas até que a gente entende (afinal de contas, eu tenho cara de má e manifesto muito perigo, né!); agora, esconder o salário da própria mulher? Tem certeza que o nome disso é casamento? A maioria dos moradores não gosta de falar a renda, mentem muito abaixo do valor real, principalmente quando possuem um padrão financeiro mais alto. Nas casas de gente pobre ou dos que vivem de aposentadoria, bicos e trabalhos que pagam mal, a exatidão do salário impressiona:
- Qual foi a sua renda em julho desse ano?
- Ah, a mesma de agora. Seiscentos e cinquenta e sete reais e trinta centavos.


 O parcelamento da Casas Bahia
 Quando entrei em casebres excessivamente humildes, onde os donos da casa nos conduzem até a sala, para sentarmos em sofás modestos, não me espantei mais com o aparelho de televisão fixado no meio da sala. Um elefante perdido em uma caixinha de fósforo. LCD, HD, tela plana, DVD e todas as siglas e regalias que uma televisão tem direito. Não importa a casa que você entrar, se for de um brasileiro, a única certeza é de que haverá uma televisão. Mesmo que paga em trezentas parcelas sem juros na Casas Bahia.  

 Projeto Censo 2020
 Não sei se o próximo censo, em 2020, será feito como o desse ano. Provavelmente, não. Eu acredito que a maior parte será feita de forma online, por cada morador. Mas, se ainda existir recenseador batendo de porta em porta, proponho o Projeto Censo 2020. Moradores de todo o Brasil, vocês têm exatamente dez anos para providenciar campainhas que funcionem, cachorros que não mordam e caixinhas de Correio decentes. (Mas as campainhas, ah... Essas são as mais importantes!).
 Para o Censo 2020, eu espero que o governo faça ainda mais divulgação. Não sei se demos azar por ser ano de eleição e, muitas vezes, o governo dar mais atenção para campanha eleitoral do que para a divulgação desse evento de enorme grandeza ao Brasil. O fato é que muita gente sequer sabe o que é o Censo e para que ele serve. As propagandas na tevê foram insuficientes, os avisos no rádio foram insuficientes, as notícias na Internet foram insuficientes, a cena do recenseador na novela das nove foi insuficiente. De resto, vamos festejar o sucesso do Censo 2010 e agradecer a cada morador que recebeu a nós, recenseadores, e que está tornando possível a realização de um "retrato de corpo inteiro" do Brasil!



* Igualmente na outra postagem, em respeito ao sigilo e à vida pessoal dos personagens mencionados aqui, os nomes presentes nesse post foram trocados.

6 comentários:

Anônimo disse...

[Silver]

Camilla, ri muito e fiquei "refletindo" (peguei um espelho e fiquei brincando com os raios solares, rs) sobre a diferença de comportamento que temos, ah os velhinhos(!), já vivi coisas semelhantes nas vezes que mochilei com os amigos, eles são deveras super acolhedores e avós de todos nós.
Trabalhar com o publico não é facil, mas é bom!


Se EU lembrar depois faço uns comentários via voz, rs.

bjÕs e o censo não passou na minha casa!!!

Iris disse...

Estou aqui morrendo de rir com suas experiências censisticas....rsrsrs
Tudo vale como lição de vida né mesmo?
Parabéns! você é uma brasileira vencedora.
Sou sua fã
beijocas da titia

Jaqueline (puc) disse...

Cá, adorei! Me diverti com as suas histórias e consegui imaginá-la contando cada história hahahaha :)

carla francine disse...

Oi Camila, é a Carla aqui do IBGE.
Adorei teu post, eles deveriam ter te contratado pra ser escrever sobre o censo.

beijos

NelsonMP disse...

Só agora lendo o seu relato, percebi qual é a função principal do senso. Veja o número de pessoas que trabalharam como você é grande, e cada uma delas contou as suas experiências, observações, reflexões e sentimentos, para a sua família e amigos. Assim, muitas e muitas pessoas estão sendo tocadas por essas impressões e sensações. Mais importante do que os dados técnicos colhidos é essa "censível" fotografia do Brasil que ficou gravada no coração daqueles que trabalharam no censo, daqueles que entraram nas casas e ouviram de perto as pessoas e depois transmitiram essa vivência para aqueles que estão no seu círculo de relações. Nestes tempos, onde as pessoas andam isoladas em suas casas, e perderam a noção de como é a realidade dos outros, esse movimento é ainda mais essencial, porque de fato, através desses contatos está ampliando significativamente a consciência "censível" que temos de nós mesmo. E isso potencializa transformações porque também nos faz mais tolerantes, mais pacientes, mais compassivos, mais atenciosos, menos preconceituosos e com uma visão mais clara do que é ser brasileiro e da força que está oculta na Alma de cada um. Obrigado por ter ajudado neste grande trabalho de ampliação da consciência nacional, graças a isso as nossas fotos vão ficar cada vez mais bonitas.

sandra miranda disse...

CAMILA, ACHEI MUUUIIITOOOO LEGAL TUDO O QUE VOCÊ ESCREVEU...QUE TALENTO HEIN MENINA....REALMENTE NÃO SEI A QUEM VOCÊ PUXOU...A MÃE E PAI TENHO CERTEZA QUE NÃO. OLHA, AGORA A PERGUNTA QUE NÃO QUER CALAR: AFINAL, VOCÊ PASSOU O TELEFONE PARA O MARCELO, OU VAI FAZÊ-LO ESPERAR ATÉ 2020??
BEIJOS.