domingo

Trouxeste a chave?

Marcos estava aberto hoje. Não apenas o estabelecimento, em um esforço metonímico, mas o proprietário e único funcionário da loja de fachada com pouco mais de um metro de largura, um dos chaveiros mais estreitos da Avenida São João. Depois de conhecê-lo, há alguns meses, dei para reparar que as pessoas são portas e que o chaveiro, de conversa e troco fáceis, embora possuísse todas as chaves que quisesse, estava destrancado. Abriu-se todo para mim com sua conversa. E, em questão de segundos, fez a chave que solicitei ganhar forma.

O fazedor de chaves, ágil ao manejar o instrumento de metal, mostrou-me os cantos secretos de cada uma. Cavidades mais profundas, recortes mais detalhados... e a fechadura por fim descoberta. Quantos segredos não guardariam um chaveiro?

Imediatamente, penso em Ariel e em seu trancamento. Em seu oculto que desejo ver revelado. Convivemos há anos e mesmo assim ele se mostra como um portão de aço, fechado com cadeado e sem janela aberta à vista para pular, quando mais quero entrá-lo, explorá-lo. Invadi-lo.
Talvez, seja melhor assim. Do contrário, acabaria desprezando-o. Faço isso, naturalmente, com tudo aquilo que chega fácil demais até mim. No fundo, gostamos das pessoas-portas que rangem, que emperram. Que são trancadas com a chave do lado oposto de onde estamos, sem cópia reserva ou carcereiro disponível. 
Quando finalmente abrimos as portas mais relutantes é porque ganhamos confiança de ter a chave. Feito quando fiz dezoito anos e ganhei a de casa. Pendurei-a em meu melhor chaveiro. Conquistar a chave das pessoas vedadas é ter livre acesso a elas. É entrar na pessoa e descobrir cada canto e até novas portas. No final das contas, nunca paramos de conhecer a mesma pessoa, até nos reconhecermos.   
Eu quero te entrar, Ariel.   
Mas tenho receio. Perturba-me, principalmente, gostar mais da ansiedade de querer te abrir do que te descobrir. Estou ansiosa por ficar ansiosa, Ariel. E se um dia, podendo te entrar, eu simplesmente esquecer a chave? Poderei bater na porta? Ela será aberta ou precisarei de senha?
Então eu desisto! De agir como um claviculário desnorteado, de querer entrar à força e clandestinamente em você, de passar para dentro e ver o que não é mostrado para qualquer pedestre que toca a campainha e espera ser espiado pelo olho mágico. Canso de viver no plano das suposições.
Você, Ariel, é uma incógnita para qualquer chave mestre.
Penso, então, que a melhor solução é encostar a minha porta. Chaveio-me. E segredo, ao pé de seu ouvido, que há uma chave extra embaixo do tapete escrito “bem-vindo” em letras coloridas. Entre-me e fique à vontade.   


*
O título é um trecho de Procura da Poesia, poema de Drummond brilhantemente interpretado por Paulo Autran, patrono do teatro brasileiro, aqui.

2 comentários:

matheus disse...

daqui a pouco você enjoa de mim.

NelsonMP disse...

Você já reparou nos chaveiros aqueles painéis cheios de chaves lisas penduradas, de todos os modelos. Que elas se parecem com peixinhos, de vários tamanhos, a maioria prateados.
Então se cada um é uma porta, a chave seria o segredo de acesso à Alma.
Você pergunta, qual é o mistério do amor? Mas o segredo que vamos aprendendo com o tempo, é justamente que o amor é uma sabedoria e a sabedoria é um amor.