Ariel comia tomate e era cardíaco. Ainda assim, adorava superstições e levava todos os conselhos a sério; não tomava líquido gelado junto com sopa quente para não trincar os dentes. Não deixava chinelo virado para o chão para não morrer parente. Não passava embaixo de escada para não dar sorte ao azar. Nunca na vida tomou leite depois de ter chupado manga. Era de fato precavido.
Mas tinha um ponto fraco.
Em sua coleção de prevenções não constava o item guarda-chuva. Desistiu, também, da capa de chuva, das galochas, dos avisos da mãe e da mulher do tempo. Estava, portanto, sempre molhado.
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-Por que essa perseguição, São Pedro?
-Por que não dá atenção ao ovo no telhado, Santa Clara? Indagava-se Ariel.
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Não era para menos. Nasceu nos anos 40, em dia de tempestade. Carma. Passou a infância debaixo de chuva. Pele molhada, roupa encharcada, meia ensopada. Oh, tudo menos as meias! Como se sentia tomado pelo ódio com as meias cheias de água!
No começo da vida, vivia esquecendo o guarda-chuva em casa e, quando se lembrava dele, não chovia. Até que se cansou e abriu mão. Nem resfriado pegava mais.
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Hoje era mais um típico dia de Ariel: desarmado. Mais um típico dia de São Paulo: despreparada em meio a tanto toró de verão. Pé d'água à vista... Enchente evidente. Ariel na rua, longe de seu destino final. Completamente aguado.
É verdade, ele estava acostumado com as chuveiradas a céu aberto desde menino. Com os anos, ganhou experiência para enfrentar novos temporais.
Calça arregaçada.
Passo apertado.
Agilidade para pular as poças.
Celular e documentos embrulhados na sacola do mercado.
Mas a chuva de hoje estava demais. Em seus quase setenta anos, nunca havia visto qualquer coisa parecida. Trovões e raios em fúria total. Ventos velozes, capazes de arrancar árvore pela raiz. Os carros que uma hora trafegavam, não existiam mais. Sentiu-se em Veneza. Ou em Atlântida? Desmoronamentos, alagamentos, perdas. A natureza estava brava? Seria algum tipo de apocalipse?
Pausa.
Em um instante, tudo acabou. No chão, apenas a lembrança de uma tragédia. Tudo secando, nuvens afastando-se. No céu... Ah, lá estava ele.
Uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete cores. Nenhuma faltando. Como era lindo! Só faltava o pote de ouro. Não, nem isso faltava.
2 comentários:
Pede pro Ariel ficar uns dias em casa. Bem enfurnado. Prá ver se para de chover pelo menos um pouquinho. Sinto que é ele o responsável por esses 40 e muitos dias de chuva. Porque esse Ariel é real!
Caramba! O Ariel morreu de chuva!
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