domingo

Poeira

Cheguei em casa de tarde depois de uma caminhada que ainda fazia a digestão quando me vi diante desta manchete: Artista sai de favela brasileira e vai a pé até Nova York (Folha de São Paulo). Para resumir a notícia: Paulo Nazareth, 34 anos, é um artista mineiro que vivia em Santa Luzia, região metropolitana de Belo Horizonte, e foi de Minas Gerais até Nova York a pé. Levou seis meses e 15 dias na peregrinação e, entre caronas, chinelos no chão e uma única bolsa de pano, calcula ter caminhado 700 km e emagrecido sete quilos. Como é? 

Não pude conter o riso. Melhor ainda foi quando descobri que o artista não lavou os pés durante a viagem. Nem um único dia! No final da jornada, diz ter lavado os pés no rio Hudson. Menciona a reportagem, assinada pela Mônica Bergamo: "Foi como arrancar uma pele. A poeira já fazia parte do meu pé (...). Não lavo os pés quando vou para os EUA para levar um pouco de poeira da América Latina para lá". 

Sempre pensei nessa coisa de levar a poeira do nosso pé para os lugares. Sapato, aliás, é um dos itens do guarda-roupa que mais gosto, principalmente tênis. Quando estava fazendo as minhas malas para vir a Portugal, me vi num dos maiores impasses da minha vida: qual sapato vai? Qual sapato fica? Qual tênis merece conhecer o velho continente? Qual deles terá mais histórias (mais poeira) para espalhar por aí? Qual deixará mais pegadas? 

Lembro muito bem da Marina Morena, amiguíssima também mineira, me dizendo algo semelhante a isso: "quando vou viajar, fico pensando qual sapato será mais justo levar comigo". Será que sempre existe aquele que tem mais direito a conhecer novos lugares? Aquele que tem mais poeira da nossa origem para espalhar? Mais vestígios nossos para deixar em novos cantos do mundo? 

Feito pedra no sapato, fiquei atormentando esses questionamentos a tarde toda. Fiquei sem chão e não achei resposta. A pegada, a sujeira, a poeira... são todas coisas efêmeras, mas que vão se acumulando aos poucos, construindo a nossa história e nossa memória. Como uma calçada da fama, há ainda de se espalhar muita pegada eterna por aí, mesmo que existam buracos pelo caminho, mas, sem pisar em ninguém, percorrer ruas e ruas pela frente. De preferência, é claro, com um sapato confortável. 


Chão do parque do Palácio de Cristal - Porto

3 comentários:

Camilla Wootton Villela disse...

PS: combina com o post:
Chão - Lenine
http://www.youtube.com/watch?v=hL7TzaiLt-s

Carlos disse...

Escrevendo só para deixar registrado: Adorei o texto!

Nos inventamos cada vez que trazemos a poeira de aculá.

Cristiane Canoso disse...

Adorei! Lendo o seu texto lembrei que eu e minha irmã costumávamos dizer que nossa roupa ficava com o "carinho" dos lugares onde passamos! As vezes a gente usava alguma peça específica pois ela estava com "carinho da casa da vovó", por exemplo... hahaha :)